"O teatro é isso: a arte de nos vermos a nós mesmos, a arte de nos vermos vendo!"
(Augusto Boal)

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Uma pessoa que mostra os braços

Relato do educador Frei Betto, em conversa com Paulo Freire, no livro "Essa escola chamada vida", sobre oficinas de teatro propostas por ele no presídio durante a Ditadura Militar:

Betto - Havia um preso chamado Arnaldo, que, mesmo nos dias de maior calor em Presidente Venceslau, sempre andava com uma japona azul de lã, que era do uniforme penitenciário. Um dia, perguntei a ele: “Arnaldo, por que você nunca tira a japona? Você não sente calor?”. Ele disse: “A razão não é essa. Eu, quando sair daqui, quero ser um grande bandido. Não quero mais ser um desses que estão abaixo da lei, quero ser desses que estão acima da lei, como Frank Sinatra, que é da Máfia. Você nunca o viu em manga de camisa. Os grandes bandidos só andam de terno e gravata. Acho que uma pessoa que mostra os braços é uma pessoa menor, uma pessoa inferior. E toda pessoa importante, que está acima da lei e pode fazer o que bem entende, está sempre de terno e gravata”.
Tudo bem. Comecei a trabalhar com esse cara, já com essa informação. Pois, olha, foi incrível o desbloqueio que ele apresentou na experiência teatral. Eu realizava exercícios de expressão corporal com eles, que iam desde a descontração da palavra, para fazer o oprimido tomar consciência de que a opressão o reduziu a um objeto fechado em si mesmo. Por que o trabalhador tem dificuldade de falar? Porque o seu trabalho dispensa a palavra. Ele tem apenas que ser um apêndice da máquina, um apêndice da enxada. Então, quando ele fala, parece ter a mesma dificuldade que a máquina e a enxada têm para falar e produzir a palavra... E o que eu fazia? Eu dizia: “Olha, vamos hoje fazer um passeio pelas nossas próprias bocas. Vamos abrir a boca. Mais, mais! Agora, passe a língua em toda a boca. Agora, enfiem a mão direita no céu da boca, na língua, nos dentes, bochecha esquerda, bochecha direita. Agora, com as duas mãos...”.
Assim eles iam tomando consciência de como a boca é um órgão de expressão, muito maior do que pensamos e que, em geral, temos pudor, preguiça de usar. [...]
Paulo – [...] Imagine se, em lugar de começar como começou, você tivesse feito um discurso sobre a libertação...
Betto – Mas isso é que é interessante. Eu estava contando a experiência daquele preso chamado Arnaldo, e o que me surpreendeu foi o dia em que cheguei ao pátio, e ele não só estava sem a japona, mas tinha raspado o cabelo! [...] Ele, mesmo no frio, não colocou o agasalho. Porque realmente renasceu. Alguma coisa explodiu nele.
(p. 45-46)

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